2014
Porventura Sou Eu, Senhor?
Novembro de 2014


“Porventura Sou Eu, Senhor?”

Devemos pôr de lado nosso orgulho, ver além da nossa vaidade e, em humildade, perguntar: “Porventura sou eu, Senhor?

Era a última noite de nosso amado Salvador na mortalidade, véspera do dia em que Ele ofereceria a Si mesmo como resgate por toda a humanidade. Ao partir o pão com Seus discípulos, Ele disse algo que deve ter enchido aqueles corações de apreensão e profunda tristeza. “Um de vós me há de trair”, disse-lhes.

Os discípulos não questionaram o que Ele lhes dissera. Nem olharam para os lados ou apontaram para alguém ou perguntaram “Será ele?”

Em vez disso, “[entristeceram-se] muito, [e] começaram cada um a dizer-lhe: Porventura sou eu, Senhor?1

Pergunto-me o que cada um de nós faria se tivesse passado por essa experiência com o Salvador. Será que olharíamos ao redor e pensaríamos: “Provavelmente, Ele deve estar-Se referindo ao irmão Silva. Ele nunca me enganou”, ou “Ainda bem que o irmão Santos está aqui. Ele bem que precisa ouvir essa mensagem”? Ou será que nós, como os discípulos daquele tempo, olharíamos para dentro de nós e faríamos a pungente pergunta: “Porventura sou eu?”

Nestas simples palavras “Porventura sou eu, Senhor?” repousa o princípio da sabedoria e o caminho rumo à conversão pessoal e à mudança duradoura.

Parábola do Dente-de-Leão

Havia certo homem que gostava de passear à noite pela vizinhança. Gostava especialmente de andar na calçada da casa de seu vizinho. Esse vizinho tinha um gramado perfeito, flores sempre brotando, árvores verdes de copas frondosas. Era óbvio que o vizinho fazia um esforço enorme para manter aquele lindo jardim.

Até que, um dia, ao passar diante da casa do vizinho, esse homem notou, no meio do belo gramado, um dente-de-leão, único, enorme, amarelo.

Aquilo estava tão fora de contexto que o surpreendeu. Por que o vizinho ainda não o tinha arrancado? Será que não tinha visto? Não sabia que o dente-de-leão espalha sementes que poderiam gerar dezenas de outras praguinhas?

Esse solitário dente-de-leão incomodou o homem a tal ponto que ele decidiu tomar uma providência. Deveria ir lá e arrancá-lo? Deveria jogar um herbicida? Talvez pudesse se disfarçar e, na calada da noite, remover a praga em segredo.

Esses pensamentos ocuparam sua mente enquanto voltava para casa. E assim ele entrou, sem sequer olhar para o próprio jardim — que estava coberto de centenas de dentes-de-leão amarelos.

Traves e Argueiros

Será que essa história nos lembra das palavras do Salvador?

“E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? (…)

Tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão.”2

O relato sobre traves e argueiros parece estar muito relacionado a nossa incapacidade de ver a nós mesmos com clareza. Não sei por que somos tão hábeis em diagnosticar e prescrever soluções para os males dos outros, mas temos tanta dificuldade de identificar os nossos próprios.

Há poucos anos, foi divulgada a história de um homem que acreditava que, se esfregasse suco de limão no rosto, ficaria invisível às câmeras. Então, passou suco de limão por todo o rosto, saiu de casa e assaltou dois bancos. Não demorou muito, ele foi preso depois que sua imagem foi transmitida no noticiário daquela noite. Quando a polícia mostrou ao homem os vídeos de segurança dos bancos, ele não acreditou no que viu. “Mas eu passei suco de limão no rosto!” protestou.3

Um cientista da Universidade Cornell, depois de ouvir essa história, ficou intrigado pelo fato de alguém ser tão inconsciente da própria incompetência. A fim de determinar se isso era um problema geral, dois pesquisadores convidaram alguns universitários a submeter-se a uma série de provas sobre vários aspectos da vida e, depois, a avaliar o próprio desempenho nessas provas. Os alunos que foram mal fizeram as avaliações menos exatas do próprio desempenho — alguns até acharam que suas notas deveriam ser cinco vezes mais altas do que foram na realidade.4

Esse estudo foi repetido de diversas maneiras, confirmando cada vez mais a mesma conclusão: muitos de nós têm dificuldade para ver a si mesmos como são na verdade. Mesmo pessoas bem-sucedidas superestimam a própria contribuição e subestimam a de outras pessoas.5

Talvez não seja tão grave superestimar nossa forma de dirigir um carro ou a distância que nossa bola de golfe alcança. Mas, se começarmos a acreditar que nossa contribuição em casa, no trabalho e na Igreja é maior do que realmente é, ficaremos cegos às bênçãos e oportunidades de nos aprimorar mais significativa e profundamente.

Pontos Cegos Espirituais

Um conhecido meu morava em uma ala cujas estatísticas eram as mais altas da Igreja: altos números na frequência, no ensino familiar e nas visitas, as crianças da Primária eram as mais bem comportadas, os jantares tinham pratos fantásticos e os membros jamais sujavam o chão, e penso até que nunca houve nenhuma discussão nos jogos de futebol.

Esse meu amigo e sua mulher foram chamados para servir missão. Quando retornaram, três anos depois, esse casal se surpreendeu ao saber que, enquanto estiveram fora, 11 casamentos haviam terminado em divórcio.

Embora a ala tivesse todas as indicações externas de fidelidade e constância, algo desolador estava acontecendo no coração e na vida dos membros. O que mais preocupa é que essa situação não é um caso isolado. Coisas assim terríveis — e muitas vezes desnecessárias — acontecem quando os membros negligenciam os princípios do evangelho. Por fora, talvez aparentem ser discípulos de Jesus Cristo; mas, por dentro, seu coração se afastou do Salvador e de Seus ensinamentos. Eles se afastaram gradualmente das coisas do Espírito e voltaram-se para as coisas do mundo.

Portadores do sacerdócio, antes dignos, passam a se convencer de que a Igreja é boa para as mulheres e as crianças, mas não para si mesmos. Alguns estão convencidos de que sua agenda lotada ou suas circunstâncias especiais os isentam dos atos diários de devoção e serviço que os manteriam próximos do Espírito. Em uma época como esta, de autoindulgência e narcisismo, é muito fácil ser criativo ao dar desculpas para não se achegar regularmente a Deus em oração, procrastinar o estudo das escrituras, evitar as reuniões na Igreja e as noites familiares ou não pagar honestamente o dízimo e as ofertas.

Meus queridos irmãos, por favor, olhem para o próprio coração e façam só esta pergunta: “Porventura sou eu, Senhor?”

Vocês já negligenciaram — mesmo que só um pouquinho — o “evangelho da glória de Deus bem-aventurado, que [lhes] foi confiado”?6 Já permitiram que “o deus deste mundo” obscureça sua mente para “a luz do evangelho da glória de Cristo”?7

Amados amigos, queridos irmãos, perguntem-se: “Onde está o meu tesouro?”

Será que seu coração está fixo nas coisas convenientes deste mundo ou está fixo nos ensinamentos do diligente Jesus Cristo? “Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”.8

Será que o Espírito de Deus habita em seu coração? Será que estão “arraigados e fundados” no amor a Deus e a seus semelhantes? Será que dedicam tempo e criatividade suficientemente para trazer felicidade a seu casamento e a sua família? Será que usam toda a sua energia na meta sublime de compreender e viver “a largura, o comprimento, a altura, e a profundidade”9 do evangelho restaurado de Jesus Cristo?

Irmãos, se tiverem o grande desejo de cultivar os atributos cristãos da “fé, da virtude, do conhecimento, da temperança, da paciência, da bondade fraternal, da piedade, da caridade, da humildade [e do serviço]”,10 o Pai Celestial os transformará em instrumentos em Suas mãos para a salvação de muitas almas.11

Uma Vida Examinada

Irmãos, ninguém gosta de admitir quando está se desviando do curso correto. Sempre tentamos evitar uma análise detalhada de nossa alma e um confronto com nossas fraquezas, nossas limitações e nossos medos. Consequentemente, quando paramos para examinar nossa vida, tendemos a vê-la através do filtro do favoritismo, das desculpas e das histórias que contamos a nós mesmos para justificar ações e pensamentos indignos.

Mas é essencial que consigamos ver a nós mesmos com clareza em prol de nosso crescimento e bem-estar espiritual. Se nossas fraquezas e ineficiências continuarem ocultas nas sombras, o poder redentor do Salvador não poderá curá-las e transformá-las em forças.12 Ironicamente, tanto nossa cegueira quanto nossas fraquezas humanas não nos deixarão ver o potencial divino que nosso Pai anseia desenvolver em cada um de nós.

Então, de que maneira podemos fazer brilhar a pura luz das verdades de Deus em nossa alma e ver-nos como Ele nos vê?

Gostaria de lembrar que as sagradas escrituras e os discursos das conferências gerais são um espelho excelente para fazer nossa autoavaliação.

Ao ouvir ou ler as palavras dos profetas antigos e modernos, abstenham-se de pensar o quanto essas palavras se aplicam a outras pessoas e façam a si mesmos esta simples pergunta: “Porventura sou eu, Senhor?”

Devemos nos achegar a nosso Pai Eterno com um coração quebrantado e uma mente aberta. Devemos estar dispostos a aprender e a mudar. E veremos o quanto temos a ganhar ao nos comprometermos a viver a vida que o Pai Celestial deseja para nós!

Aqueles que não desejam aprender e mudar provavelmente não o farão; e, muito provavelmente, passarão a se perguntar se a Igreja tem algo a lhes oferecer.

Contudo, aqueles que desejam melhorar e progredir — que aprendem com o Salvador, desejam ser como Ele, submetem-se como uma criancinha e buscam manter os pensamentos e ações em harmonia com nosso Pai Celestial —, esses experimentarão o milagre da Expiação do Salvador. Esses certamente sentirão o Espírito resplandecente de Deus. Provarão a alegria indescritível que é fruto de um coração manso e humilde. Serão abençoados com o desejo e a disciplina de se tornarem reais discípulos de Jesus Cristo.

O Poder do Bem

No curso de minha vida, tive a oportunidade de trabalhar lado a lado com alguns dos mais competentes e inteligentes homens e mulheres que este mundo tem a oferecer. Quando era mais jovem, eu ficava impressionado com pessoas instruídas, bem-sucedidas e aplaudidas pelo mundo. Com o passar do tempo, porém, passei a ficar muito mais impressionado com estas almas maravilhosas e abençoadas que são realmente boas e sem dolo.

E não é isso que o evangelho é e faz por nós? Ele é a boa nova, e ele nos ajuda a sermos bons.

As palavras do Apóstolo Tiago aplicam-se, hoje, também a nós:

“Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes. (…)

Humilhai-vos perante o Senhor, e ele vos exaltará”.13

Irmãos, devemos pôr de lado nosso orgulho, ver além da nossa vaidade e, em humildade, perguntar: “Porventura sou eu, Senhor?”

E se a resposta do Senhor for: “Sim, meu filho, há coisas em que você precisa melhorar, coisas que posso ajudar você a vencer”, oro para que aceitemos essa resposta, reconhecendo com humildade nossos pecados e nossas fraquezas e que então mudemos nosso comportamento tornando-nos melhores maridos, melhores pais e melhores filhos. Que a partir de agora busquemos, com toda a força que há em nós, percorrer inabaláveis o caminho abençoado do Salvador, pois ver a nós mesmos com clareza é o princípio da sabedoria.

Assim fazendo, nosso muito generoso Deus nos conduzirá pela mão, e seremos “fortalecidos e abençoados do alto”.14

Meus queridos irmãos, o primeiro passo nesse caminho maravilhoso e gratificante do verdadeiro discipulado começa com esta simples pergunta:

“Porventura sou eu, Senhor?”

Disso testifico e deixo-lhes minha bênção, em nome de Jesus Cristo. Amém.

Notas

  1. Mateus 26:21–22; grifo do autor.

  2. Mateus 7:3, 5.

  3. Ver Errol Morris, “The Anosognosic’s Dilemma: Something’s Wrong but You’ll Never Know What It Is”, New York Times, 20 de junho de 2010; opinionator.blogs.nytimes.com/2010/06/20/the-anosognosics-dilemma-1.

  4. Ver Justin Kruger e David Dunning, “Unskilled and Unaware of It: How Difficulties in Recognizing One’s Own Incompetence Lead to Inflated Self-Assessments”, Journal of Personality and Social Psychology, dezembro de 1999, pp. 1121–1134. “Em quatro estudos, os autores viram que os participantes com nível de acerto abaixo de 25% nas provas de humor, gramática e lógica superestimaram ao extremo seu desempenho e suas capacidades. Embora as notas os colocassem em níveis muito baixos, eles acharam que estivessem entre os melhores” (resumo contido em psycnet.apa.org/?&fa=main.doiLanding&doi=10.1037/0022–3514.77.6.1121).

  5. Ver Marshall Goldsmith, What Got You Here Won’t Get You There, 2007, capítulo 3. O pesquisador pediu a três sócios que classificassem as próprias contribuições para o sucesso da companhia. A soma das autoavaliações deu como resultado 150%.

  6. I Timóteo 1:11.

  7. II Coríntios 4:4.

  8. Lucas 12:34.

  9. Efésios 3:18.

  10. Doutrina e Convênios 4:6.

  11. Ver Alma 17:11.

  12. Ver Éter 12:27.

  13. Tiago 4:6, 10.

  14. Doutrina e Convênios 1:28.