Corações traspassados por feridas profundas: Compreender o abuso na família
Qualquer relacionamento é passível de desenvolver padrões nocivos. Reconhecer esses padrões pode ser útil para descobrir situações de abuso e maus-tratos ou para impedir que aconteçam.
Recentemente, conversei com um pai que estava de coração partido. Sua filha, Jenna (os nomes foram alterados), estava na faculdade e havia começado um novo relacionamento, que logo foi ficando mais sério. O namorado dela, Jake, estava fazendo pressão para que se casassem e havia limitado a comunicação de Jenna com a família. Ela pediu desculpas aos pais e explicou que Jake apenas tinha um amor muito forte e queria mais tempo a sós para o casal.
A família de Jenna ficou preocupada ao saber que Jake tinha uma ex-esposa e um filho e omitira essa informação de Jenna. Eles ligaram para a ex-esposa, que lhes contou que Jake tinha um temperamento explosivo e era muito ciumento. Quando descobriu o que eles tinham feito, Jake ficou enfurecido. Acusou os pais de Jenna de serem “controladores”, citando como exemplo uma ocasião em que reprovaram uma piada depreciativa que ele fizera a respeito da inteligência de Jenna. Ironicamente, Jake insistiu para que Jenna tomasse suas próprias decisões, o que significava parar de falar com os pais. Os pais dela ficaram desesperados ao ver que suas ligações não eram atendidas e suas mensagens eram ignoradas.
Todos queremos uma família feliz, mas, mesmo quando as pessoas procuram viver o evangelho, os relacionamentos podem passar por altos e baixos. Alguns desafios são resultado de mal-entendidos ou de atritos comuns a todas as famílias. Entretanto, em lares saudáveis, as pessoas pedem desculpas quando agem mal e resolvem as divergências; enquanto, em ambientes nocivos, há padrões contínuos de hostilidade ou agressividade, que se tornam comportamentos abusivos.
O abuso doméstico e o evangelho
“Haveis quebrantado o coração de vossas ternas esposas e perdido a confiança de vossos filhos” (Jacó 2:35).
O abuso consiste em ações cuja intenção é ferir ou controlar. Abrange uma vasta gama de comportamentos que incluem a negligência, a manipulação, as críticas verbais e a violência física ou sexual.1 Infelizmente, comportamentos abusivos são comuns, de maneira que alguns estudiosos estimam que cerca de um quarto das crianças em todo o mundo são maltratadas física, sexual ou emocionalmente.2 Os índices de vitimização entre adultos também são altos, com aproximadamente 1 em cada 4 mulheres e 1 em cada 10 homens sofrendo violência física por parte do cônjuge.
O abuso pode acontecer em qualquer relacionamento, e tanto homens quanto mulheres podem ser os perpetradores. Entretanto, os homens são mais propensos a controlar e cometer violência física e sexual grave, enquanto as mulheres têm maior probabilidade de serem aterrorizadas psicologicamente, dominadas ou gravemente feridas pelo cônjuge.3
O abuso prejudica a alma tanto do agressor quanto da vítima e é contrário aos ensinamentos do Salvador. Os profetas modernos declararam que aqueles “que maltratam o cônjuge ou os filhos (…) deverão um dia responder perante Deus”.4 Com frequência, os abusadores ignoram ou deturpam os princípios do evangelho. Aconselhei, por exemplo, um casal em que o marido se envolvia emocionalmente com outras mulheres e gastava as economias da família em apostas, mas, em vez de pedir desculpas, pressionava a esposa para que o perdoasse e insistia que, caso não o fizesse, o “pecado maior” estava sobre ela. Ele não reconhecia a dor da mulher e alegava que a situação dele com Deus estava resolvida, do contrário ele não poderia ser oficiante do templo. Quando a esposa conversou com os líderes da Igreja, ele minimizou suas traições e garantiu que as preocupações dela eram exageradas, pois ela tinha depressão. O marido rejeitava os “princípios (…) do respeito, do amor [e] da compaixão”5 e maltratava a esposa. Por mais que se esforçasse para viver os princípios do evangelho, ela não tinha como resolver um problema criado por ele. Todos nós podemos incorrer em comportamentos nocivos. Há certas características comuns a todas as formas de abuso e maus-tratos e, quanto mais severas e frequentes forem, mais nocivo será o relacionamento. Os cinco padrões a seguir são típicos de relações abusivas e podem ajudar a reconhecer comportamentos nocivos em si mesmo e em outras pessoas.
1. Crueldade
“Com a sua língua tratam enganosamente; peçonha de áspides está debaixo de seus lábios; [sua] boca está cheia de maldição e amargura” (Romanos 3:13–14).
Um homem me procurou contra a vontade da esposa, que zombava dele por “precisar de ajuda com terapia”. Na igreja, ela era simpática e dedicada, mas, em casa, sua frieza e seu desdém atingiam o marido como se fora um açoite. Ela criticava a renda dele e dizia que a carreira de ensino que ele construíra era “trabalho de menina”. Ela dizia ao filho: “Espero que você não se torne um frouxo como seu pai” e passava todos os dias ao telefone com a mãe, cada uma menosprezando o próprio marido. Pessoas críticas se sentem justificadas em causar dor e “se deleitam em que os outros sofram” (Doutrina e Convênios 121:13). Familiares assim descumprem o mandamento dado por Jesus de não julgar e não condenar (ver Lucas 6:37), pois depreciam, mostram repugnância ou usam apelidos jocosos.
2. Mentira
“Estás possuído por um espírito mentiroso e afastaste o Espírito de Deus” (Alma 30:42).
A mentira permeia o abuso, pois os perpetradores minimizam suas ações, culpam os outros e distorcem as palavras. Isso deixa as vítimas desnorteadas, como descreveu uma participante da minha pesquisa: “[Meu marido] perdia a cabeça, então se desculpava e depois dizia: ‘De qualquer forma, a culpa é sua mesmo’, e até comecei a acreditar que era verdade”.6 Essa negação da realidade do outro, que deixa as vítimas confusas e inseguras a respeito de suas memórias e opiniões, é chamada de gaslighting. Assim como outras formas de mentira, o gaslighting é usado para manipular conversas e apresentar uma fachada falsa.
Pessoas que abusam dos outros costumam negar categoricamente que são agressores e, muitas vezes, alegam serem eles próprios as vítimas. Quando Jenna comentou que não havia gostado das críticas que Jake fizera a seus pais, ele ficou com raiva e alegou que ela o estava “insultando”. Jake se enquadra naqueles “que clamam transgressão” e são “filhos da desobediência” (Doutrina e Convênios 121:17). Ele não só promovia a mentira, mas também se ressentia da verdade.7
3. Justificativas
“Reconhece as tuas faltas e o mal que praticaste” (Alma 39:13).
Uma pessoa humilde sente remorso quando magoa os outros, de modo que se arrepende e melhora sua conduta. Quem pratica abuso, por outro lado, vale-se de justificativas e desculpas para não ouvir a voz da consciência. Como relatou um dos participantes da minha pesquisa: “Eu me sentia horrível por ter partido para a agressão física, mas depois me justificava dizendo que nada teria acontecido se ela tivesse ficado de boca fechada”. Seu “pesar não era para o arrependimento” (Mórmon 2:13), mas era substituído por raiva e atribuição de culpa à esposa.
Na terapia, certa vez comentei com uma paciente que eu ainda não tinha visto ela demonstrar tristeza segundo Deus pelos anos de críticas dirigidas ao marido. A resposta dela não demonstrou arrependimento, mas amargor: “Ótimo, mais uma coisa que estou deixando de fazer!” Pessoas com tendências abusivas não assumem a responsabilidade, são melindrosas e ficam na defensiva. Ofendem-se facilmente por coisas pequenas.
4. Orgulho
“Por humildade, cada um considere os outros superiores a si mesmo” (Filipenses 2:3).
O orgulho inclui o egocentrismo e o sentimento de que a pessoa está em seu direito. Um homem era ríspido com a mulher e os filhos toda vez que considerava que eles o haviam “desrespeitado”. Se a opinião deles não fosse igual à sua, ele dizia que eles estavam “tirando sua autoridade” ou “desobedecendo”. O orgulho é competitivo e focado no poder e na vitória. Por outro lado, uma família saudável busca sempre a cooperação e um equilíbrio justo, e seus membros procedem “retamente uns com os outros” (4 Néfi 1:2). Os cônjuges devem ser parceiros iguais,8 cada um deve ter sua voz, e todas as opiniões são valorizadas.
5. Controle
“Quando nos propomos a (…) exercer controle ou domínio ou coação sobre a alma dos filhos dos homens, (…) os céus se afastam” (Doutrina e Convênios 121:37).
Embora valorizemos o arbítrio, é surpreendente a frequência com que os membros da família dizem uns aos outros como devem pensar, sentir e agir. Alguns até usam de intimidação, vergonha e ameaças, ou mesmo negação de afeto, a fim de exercer controle. Um marido nutria expectativas inflexíveis, exigindo que a esposa preparasse o desjejum todos os dias em determinado horário, atendesse a pedidos íntimos específicos e desse ouvidos a suas “preocupações”, que geralmente envolviam maneiras de como ela poderia melhorar. Ele monitorava os gastos dela e ficava com raiva se ela não respondesse a suas mensagens prontamente.
Uma mãe se mostrava constantemente decepcionada com a filha adolescente sempre que a menina demonstrava tristeza ou não correspondia aos padrões estabelecidos pela mãe. Se as expectativas não fossem atendidas, ou se o marido dela fizesse alguma ressalva, ela tratava a todos com frieza e os ignorava.
Esperança e cura
“Ouvi a tua oração, e vi as tuas lágrimas; eis que eu te sararei” (2 Reis 20:5).
Embora o abuso seja desolador, a mudança é sempre possível. As vítimas podem se valer de recursos espirituais e profissionais, além de buscar o poder da Expiação do Salvador para curar suas feridas. Para encontrar ajuda, acesse abuse.ChurchofJesusChrist.org.
Aqueles que têm se comportado de maneira abusiva devem se arrepender e procurar ajuda. Para isso, devem “[humilhar-se] profundamente” (3 Néfi 12:2) e aceitar plena responsabilidade por seus atos. A mudança requer mais do que promessas de curto prazo e esforços superficiais. A dor do arrependimento profundo aflige a alma, e algumas pessoas não terão disposição para fazê-lo, o que deixa as vítimas com a difícil decisão de encontrarem formas de se protegerem.9
Nosso Pai Celestial está preocupado conosco, assim como o pai aflito que me procurou por causa da filha. O amor de Deus é amplo “como a eternidade” (Moisés 7:41), e Ele sofre imensamente quando Seus filhos fazem mal uns aos outros. Numa terna conversa com Enoque, Ele chorou. “Estes teus irmãos; eles são a obra de minhas próprias mãos (…) e também dei mandamento que se amassem uns aos outros (…); mas eis que eles não têm afeição e odeiam seu próprio sangue” (Moisés 7:32–33). O céu e a Terra pranteiam quando corpos e almas são feridos. No entanto, com humildade, com o poder de Deus e com auxílio profissional quando necessário, é possível refrear o comportamento nocivo e criar um lar cheio de dignidade, segurança e amor.