Capítulo 15
Senhor Do Sábado
O Sábado Sagrado para Israel
A observância do sábado como dia santo era um requisito preeminente entre os mandamentos do Senhor ao Seu povo, Israel, desde os primórdios de sua história como nação. Na verdade, guardar o sábado como dia em que toda tarefa ordinária devia cessar, era uma característica nacional pela qual os israelitas se distinguiam dos povos pagãos, e isto era justo, pois a santidade do sábado se tornou um sinal do convênio entre o povo escolhido e seu Deus. A inviolabilidade do sábado havia sido anunciada no relato da criação, antecedendo a vinda do homem à Terra, como é demonstrado pelo fato de que Deus descansou após os seis períodos ou dias de trabalho criativo, e abençoou o sétimo dia e o santificou.a Durante o êxodo de Israel, o sétimo dia foi designado como o de descanso, no qual não era permitido assar, cozer, nem preparar alimento de qualquer outra forma. Um suprimento duplo de maná devia ser recolhido no sexto dia, enquanto nos outros dias era expressamente proibido guardar a sobra deste pão cotidiano enviado do céu. O Senhor observava o caráter sagrado do dia santo, não dando maná durante o mesmo.b
O mandamento de celebrar rigorosamente o sábado tornou-se claro e explícito no decálogo, escrito pela mão de Deus em meio à majestosa glória do Sinai; e a ordem formal estava sempre diante do povo na forma de freqüentes proclamações.c Era ilícito acender fogo naquele dia; e registra-se que um homem foi condenado à morte por recolher lenha no sétimo dia.d Sob a administração de profetas posteriores, a santidade do sábado, as bênçãos prometidas aos que santificassem esse dia, e o pecado da sua profanação foram reiterados em palavras de inspirado vigor.e Neemias fez admoestações e reprovações sobre esse assunto, e atribuiu a aflição do povo à perda dos favores de Jeová em virtude da violação do sábado.f Pela boca de Ezequiel, o Senhor afirmou que a instituição do sábado era um sinal do convênio entre Ele e o povo de Israel; e com severidade, reprovou aqueles que não guardavam o dia.g Para o ramo separado da nação israelita, que havia colonizado o hemisfério ocidental, o respeito à santidade do sábado era uma exigência não menos imperativa.h
A observância exigida, entretanto, era bem o oposto de aflições e fardos; o dia de descanso era consagrado ao repouso e justo prazer, e devia ser um dia de festa espiritual diante do Senhor. Não era estabelecido como dia de abstinência; todos podiam comer, porém tanto a ama quanto a criada deviam ser dispensadas do trabalho de preparar alimento; nem o senhor nem o servo deviam arar, cavar ou realizar qualquer outra tarefa; e o dia de descanso semanal era tanto para benefício do gado quanto de seus donos.
Além do sábado semanal, o Senhor, em Sua misericórdia, prescreveu também um ano sabático; em cada sétimo ano, a terra deveria descansar, aumentando assim sua fertilidade.i Depois que sete vezes sete anos se tivessem passado, o qüinquagésimo deveria ser celebrado como o ano do jubileu, durante o qual o povo viveria do que acumulara nas prósperas estações precedentes, regozijando-se em liberalidade, concedendo uns aos outros resgate de hipotecas e obrigações, perdoando dívidas, aliviando encargos — o que devia ser feito com o espírito de misericórdia e justiça.j Os sábados estabelecidos pelo Senhor, fossem dias, anos, ou semanas de anos, eram designados para serem tempos de refrigério, alívio, bênção, generosidade e adoração.
Para os muitos que consideram a necessidade de trabalhar como parte do anátema provocado pela queda de Adão, o sábado deveria ser como um dia de alívio temporário, um período de isenção do labor, e como uma oportunidade abençoada que permite ao homem aproximar-se mais daquele de cuja presença foi afastado em virtude do pecado. E, para aqueles que têm uma visão mais elevada da vida, e encontram no trabalho tanto felicidade como bênção material, o repouso periódico traz um novo vigor e novo prazer com que o indivíduo enfrenta os dias que se seguem.
Mas, muito antes do advento de Cristo, o propósito original do sábado tornara-se grandemente ignorado em Israel; e o espírito de sua observância havia sido sufocado pelo peso dos regulamentos rabínicos e o formalismo das restrições. No tempo do ministério do Senhor, eram inumeráveis as interpretações técnicas prescritas como regras e atribuídas à lei; e a carga que desta forma fora imposta ao povo tornou-se quase insuportável. Entre os muitos requisitos sadios da lei mosaica, que os mestres e legisladores espirituais dos judeus haviam tornado tão difícil de suportar, a observância do sábado ocupava lugar de destaque. A “sebe” que eles pretensamente ergueram ao redor da leik, em uma apropriação não autorizada, era particularmente espinhosa nas partes devotadas ao sábado judaico. Mesmo as mais insignificantes infrações das regras tradicionais eram severamente punidas, e a pena capital pairava sobre a cabeça do povo como a ameaça derradeira para a suprema profanação.l
A Cura de um Paralítico no Sábado
Em vista das condições reinantes, não nos surpreendemos ao encontrar nosso Senhor, relativamente cedo no decorrer de Seu trabalho público, sendo acusado de violar o sábado. Um exemplo que acarretou muitas manifestações é registrado por João,m cuja narrativa compreende a passagem de um milagre comovente. Jesus estava novamente em Jerusalém, por ocasião de uma das festas judaicas.n Havia na cidade um tanque de água, chamado Betesda, próximo ao mercado de ovelhas. Por sua descrição, podemos concluir que se tratava de uma fonte natural; provavelmente a água era rica em sólidos dissolvidos ou em gases, ou ainda em ambos, constituindo o que chamamos hoje de fonte mineral, pois vemos que a água tinha fama de possuir qualidades curativas, e muitos enfermos iam banhar-se nela. A fonte era de natureza pulsativa; a determinados intervalos, suas águas elevavam-se em borbulhante tumulto, voltando em seguida ao nível normal. Fontes minerais desta espécie são encontradas hoje em muitas partes do mundo. Alguns acreditavam que a agitação periódica das águas de Betesda era resultado de uma intervenção sobrenatural; e dizia-se que “o primeiro que ali descia, depois do movimento da água, sarava de qualquer enfermidade que tivesse.” O tanque de Betesda ficava total ou parcialmente cercado; e cinco alpendres haviam sido construídos para abrigar aqueles que esperavam o movimento intermitente das águas.
Em certo sábado, Jesus visitou o tanque e viu muitos doentes esperando. Entre eles, estava um homem que havia trinta e oito anos se encontrava gravemente enfermo. Pelas palavras do homem acerca da própria debilidade, podemos inferir que sua moléstia era paralisia, ou, possivelmente, uma forma aguda de reumatismo; qualquer que fosse sua aflição, tornava-o tão incapacitado, que ele tinha uma oportunidade muito pequena de entrar no tanque no momento preciso, pois outros menos inválidos se lhe adiantavam; e, segundo as lendas relativas às propriedades curativas da fonte, somente o primeiro a penetrar nas águas, após sua turbulência, podia ter esperança de cura.
Jesus reconheceu no homem um indivíduo merecedor de uma bênção, e disse-lhe: “Queres ficar são?” A pergunta foi tão simples, que quase pareceu supérflua… Claro é que o homem desejava ser curado, e esperava paciente mas ansiosamente pela pequena oportunidade de chegar às águas no momento exato. Entretanto, estas palavras do Mestre, assim como todas as outras, tinham um propósito. A atenção do homem foi atraída para Ele, e Nele se fixou; a pergunta despertou no coração do sofredor um renovado anseio pela saúde e pela força das quais havia sido privado desde os dias de sua juventude. Sua resposta foi dolorosa e revelou seu desesperançado estado de espírito; estava pensando apenas nas apregoadas virtudes do tanque de Betesda, quando disse: “Senhor, não tenho homem algum que quando a água é agitada, me meta no tanque; mas, enquanto eu vou, desce outro antes de mim.” Então falou Jesus: “Levanta-te, toma a tua cama e anda.” A força imediatamente ressurgiu naquele homem que, por quase quatro décadas, havia sido inválido; ele obedeceu ao Mestre, e, tomando o pequeno colchão ou catre no qual se deitava, saiu andando.
Não tinha caminhado muito quando os judeus, isto é, alguns dos oficiais, pois assim o evangelista João emprega o termo, o viram carregando sua cama; e era sábado. A peremptória reprimenda dos mesmos, respondeu, com a gratidão e simplicidade honesta de seu coração, que Aquele que o havia curado lhe dissera que tomasse a sua cama e andasse. O interesse dos inquiridores transferiu-se instantaneamente do homem para Aquele que realizara o milagre; mas o que fora aleijado não pôde fornecer o nome do seu Benfeitor, pois perdera Jesus de vista na multidão, antes que tivesse a oportunidade de formular perguntas ou agradecimentos. O homem que havia sido curado dirigiu-se ao templo, possivelmente impelido por um desejo de expressar em oração seu reconhecimento e júbilo. Lá Jesus o encontrou e lhe disse: “Eis que já estás são; não peques mais, para que não te suceda alguma coisa pior”.o A aflição do homem, provavelmente, havia sido causada por seus hábitos pecaminosos. O Senhor decidiu que ele já havia sofrido suficientemente na carne, e pôs fim ao seu tormento físico, admoestando-o depois para que não pecasse mais.
O homem foi e contou aos oficiais quem o havia curado. Isto ele pode ter feito com o desejo de honrar e glorificar o Doador de sua dádiva; não há justificativa para atribuir-lhe qualquer propósito indigno, embora, com seu ato, tenha servido de instrumento para aumentar a perseguição de seu Senhor. Tão intenso era o ódio da facção sacerdotal, que os oficiais procuraram um meio de levar Jesus à morte, com o razoável pretexto de que havia profanado o dia do sábado. Podemos perguntar-nos por qual ato esperariam condená-Lo, mesmo com a mais estrita aplicação de Suas leis. Não havia qualquer prescrição contra o falar no dia de sábado; e Jesus tinha apenas falado para curar. Ele não havia carregado a cama do homem, nem tentado realizar o mais leve trabalho físico. De acordo com Sua própria interpretação da lei, não tinham qualquer acusação contra Ele.
A Resposta do Senhor aos Judeus Acusadores
Não obstante, os oficiais judeus fizeram acusações a Jesus. Se a entrevista se realizou dentro das paredes do templo, na rua, no mercado ou no tribunal, não importa. A resposta que deu às acusações não se limitou à questão da observância do sábado, mas se constitui no mais completo sermão encontrado nas Escrituras a respeito do assunto vital que é a relação entre o Pai Eterno e Seu Filho, Jesus Cristo.
Sua primeira frase aumentou a já intensa raiva dos judeus. Referindo-Se à obra que havia feito no dia santo, disse: “Meu Pai trabalha até agora, e Eu trabalho também.” Esta afirmação eles interpretaram como blasfêmia.p “Por isso pois os judeus ainda mais procuravam matá-Lo, porque não só quebrantava o sábado, mas também dizia que Deus era Seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus.” Jesus replicou ao Seu protesto expresso ou silencioso que Ele, o Filho, não estava agindo independentemente, e que, na verdade, não podia fazer coisa alguma, exceto o que concordava com a vontade do Pai, e aquilo que havia visto o Pai fazer; e que o Pai amava o Filho de tal forma, que lhe mostrava Suas obras.
Observe-se que Jesus, de forma alguma tentou mudar a interpretação que haviam dado às Suas palavras; pelo contrário, confirmou a exatidão das Suas deduções. Ele se proclamava realmente ligado ao Pai, numa forma ainda mais íntima e sublime do que aquela que eles haviam imaginado. A autoridade que Lhe dera o Pai não se limitava à cura de enfermidades físicas; Ele tinha poder até mesmo para levantar os mortos — “Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos, e os vivifica, assim também o Filho vivifica aqueles que quer”. E ainda mais, o julgamento dos homens Lhe havia sido confiado; e ninguém podia honrar o Pai, se não honrasse o Filho. Seguiu-se esta incisiva declaração: “Na verdade, na verdade vos digo, que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas, passou da morte para a vida.”
O domínio do Cristo não era limitado pelo túmulo; até mesmo os mortos dependiam totalmente Dele para alcançar a salvação; aos ouvidos aterrorizados de Seus aturdidos acusadores, Ele proclamou a verdade solene de que estava próxima a hora na qual os mortos ouviriam a voz do Filho de Deus. Meditemos sobre esta profunda afirmação: “Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e agora é, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão.” A fúria assassina dos judeus foi repelida pela afirmativa de que, sem sua submissão, não poderiam eles tirar-lhe a vida: “Porque como o Pai tem a vida em si mesmo, assim deu também ao Filho ter a vida em si mesmo.” Fez outra afirmação igualmente insólita: “E deu-lhe o poder de exercer o juízo, porque é o Filho do Homem”. Ele, o Filho do exaltado e glorificado Homem de Santidade, e agora um Homem mortal, q deveria ser o juiz dos homens.
Não é de se admirar que eles se maravilhassem; jamais tinham ouvido ou lido tal doutrina, não era nem dos escribas, nem dos rabis, nem das escolas farisaicas ou saducéias. “Falando da ressurreição dos mortos, com referência aos que ouvirão a voz do Filho do Homem: e ressurgirão; os que fizeram o bem, na ressurreição dos justos, e os que fizeram o mal, na ressurreição dos injustos.”r
Esta proclamação da ressurreição, expressada tão claramente que o mais iletrado podia entender, deve ter ofendido os saduceus presentes, pois enfaticamente negavam a realidade da ressurreição. A universalidade de uma ressurreição é aqui afirmada indubitavelmente; não apenas os justos, mas também aqueles que merecem ser condenados deverão erguer-se de suas tumbas com seus corpos de carne e ossos.s
Então, asseverando novamente a concórdia da vontade do Pai e da Sua, Cristo referiu-Se à questão de testemunhas sobre Sua obra. Admitiu o dogma corrente naquele tempo, de que o testemunho de um homem sobre si mesmo, sem corroboração, não era suficiente; mas acrescentou: “Há outro que testifica de mim e sei que o testemunho que ele dá de mim é verdadeiro.” Ele cita João Batista, e recorda-lhes que haviam enviado a ele uma delegação, tendo João, em resposta, prestado seu testemunho do Messias; e João havia sido uma luz brilhante e refulgente, em cujo ministério muitos se haviam temporariamente regozijado. Foi tornado claro aos judeus hostis que o testemunho de João era válido segundo as suas mais estritas regras de evidência; “Mas”, continuou Ele, “não recebo testemunho de homem; (…) Eu tenho maior testemunho do que o de João; Porque as obras que o Pai me deu para realizar, as mesmas obras que eu faço, testificam de mim, que o Pai me enviou. E o Pai que me enviou, ele mesmo testificou de mim.”
Depois, em termos de condenação irrestrita, disse-lhes que estavam desprovidos da palavra de Deus, pois recusaram-se a aceitá-Lo, a Ele, a quem o Pai enviara. De maneira humilhantemente direta, admoestou esses eruditos da lei, esses intérpretes dos profetas, esses expositores profissionais das Escrituras Sagradas, a que se aplicassem à leitura e ao estudo. “Examinai as Escrituras” disse Ele, “porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam.” Condenatoriamente continuou — que eles, que admitiam e ensinavam encontrar-se nas Escrituras o caminho para a vida eterna, se recusavam a chegar-se a Ele, de quem essas mesmas Escrituras testificavam, embora, fazendo-o, pudessem obter a vida eterna. “Eu não recebo glória dos homens”, — adicionou, — “mas bem vos conheço, que não tendes em vós o amor de Deus.” Eles sabiam que buscavam honra entre os homens, recebiam honra uns dos outros, eram feitos rabis e doutores, escribas e mestres, pela concessão de títulos e graus — tudo dos homens; mas rejeitavam a Ele que viera em nome de um Ser infinitamente maior do que todas as suas escolas ou sociedades — Ele, que havia vindo no supremo nome do Pai. A causa de sua ignorância espiritual foi apontada — eles confiavam nas honras dos homens, e não buscavam a honra da dedicação verdadeira à causa de Deus.
Ele havia falado sobre a autoridade de julgamento que lhe havia sido outorgada; agora explicava-lhes que não deviam pensar que Ele os acusaria diante do Pai. Um menor que Ele acusaria, o próprio Moisés, outra de Suas testemunhas em quem professavam tanta confiança — Moisés, em quem diziam todos acreditar — e, atingindo-os com o impacto de sua poderosa acusação, o Senhor continuou: “Porque se vós crêsseis em Moisés, creríeis em mim; porque de mim escreveu ele. Mas se não credes nos seus escritos, como crereis na Minha palavra?” Tais foram as esclarecedoras instruções, e a ardorosa denúncia, que esses homens provocaram com sua fútil tentativa de condenar Jesus sob a acusação de profanar o sábado. Esta não foi senão uma das muitas maquinações pelas quais determinadamente conspiravam, tentando imputar o estigma e invocar a penalidade estabelecida para os profanadores do sábado. Aquele que havia instituído o dia do descanso, e que era, na verdade, o único Senhor do mesmo.
Os Discípulos Acusados de Profanar o Sábado
Sobre o mesmo assunto podemos, proveitosamente, considerar outros exemplos de boas obras realizadas por nosso Senhor nos sábados; e isto podemos fazer sem excessiva consideração pela ordem cronológica dos eventos. Novamente encontramos Jesus na Galiléia, não importa se antes ou depois da visita a Jerusalém, por ocasião da festa não identificada, quando realizou o milagre da cura junto ao tanque de Betesda. Em certo sábado, Ele e os discípulos atravessavam uma seara,t e, tendo fome, os discípulos começaram a colher algumas espigas maduras, e, esfregando-as entre as mãos, tiravam os grãos e comiam-nos. O que fizeram não constituía furto, pois a lei mosaica determinava que, ao atravessar uma vinha ou seara alheia, uma pessoa podia apanhar uvas ou grãos para saciar a fome; mas era proibido usar foice no campo ou carregar as uvas em qualquer recipiente.u A permissão estendia-se, somente, ao alívio da necessidade momentânea. Quando os discípulos se valeram deste privilégio legal, estavam sendo observados pelos fariseus, os quais imediatamente se dirigiram ao Mestre, dizendo: “Eis que os teus-discípulos fazem o que não é lícito fazer num sábado.” Os acusadores, sem dúvida, tinham em mente a sentença rabínica de que esfregar uma espiga entre as mãos, tirando-lhe os grãos, era como debulhar; que soprar a palha era joeirar; e que era ilegal debulhar ou joeirar no sábado. Na verdade, alguns mestres letrados haviam declarado ser pecado caminhar sobre a erva no sábado, pois a erva podia ter sementes, e arrebentar as sementes seria o mesmo que debulhar grãos.
Jesus defendeu os discípulos, citando um precedente aplicável ao caso, e de muito maior importância. O exemplo foi o de Davi que, com um pequeno grupo de homens, havia pedido pão ao sacerdote Aquimeleque, pois que estavam com fome e com pressa. O sacerdote tinha somente pão consagrado, os pães da proposição que eram, a intervalos, colocados no santuário, e que apenas os sacerdotes tinham permissão para comer. Em vista da urgente necessidade, o sacerdote havia dado o pão da proposição aos homens famintos.v Jesus também lembrou aos fariseus que criticavam Seus discípulos, que os sacerdotes, no templo, realizavam regularmente muito trabalho no sábado, abatendo as vítimas para os sacrifícios e atendendo ao serviço do altar de maneira geral, sendo, no entanto, considerados inocentes em razão dos elevados requisitos da adoração que tornavam tais trabalhos necessários; e acrescentou com ênfase solene: “Pois eu vos digo que está aqui quem é maior do que o templo.” Ele citou a palavra de Deus dada através de Oséias: “Porque eu quero a misericórdia, e não sacrifício”w, e reprovou imediatamente sua ignorância e seu zelo iníquo, dizendo-lhes que, se soubessem o que aquela Escritura significava, não teriam condenado os inocentes. Seja lembrado que “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.”a
À reprimenda, seguiu-se a afirmação de Sua supremacia pessoal: “Assim, o Filho do Homem até do sábado é Senhor. ” O que podemos deduzir dessa declaração, a não ser que Ele, Jesus, ali presente na carne, era o Ser através do qual o sábado havia sido instituído, que havia sido Ele quem dera e escrevera o decálogo na pedra, inclusive “Lembra-te do dia do sábado para o santificar”, e “o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus”?
Um Complô Farisaico
Novamente num sábado, Jesus foi à sinagoga e viu na congregação um homem cuja mão direita era mirrada.x Havia fariseus presentes que observavam para ver se Jesus iria curar o homem, sendo o seu propósito acusá-Lo, caso o fizesse. Os fariseus perguntaram: “E lícito curar nos sábados?” Nosso Senhor refutou o propósito pobremente disfarçado, perguntando: “E lícito no sábado fazer bem?” e estendeu a pergunta “ou fazer mal? Salvar a vida, ou matar?” Eles permaneceram calados, pois a pergunta tinha dois sentidos. Responder afirmativamente significaria justificar a obra de cura; responder com uma negativa seria expor-se ao ridículo. Ele formulou outra pergunta: “Qual dentre vós será o homem que tendo uma ovelha, se num sábado ela cair numa cova, não lançará mão dela, e a levantará? Pois quanto mais vale um homem do que uma ovelha?”
Como os fariseus não pudessem ou desejassem retrucar, Ele sumariou toda a questão, dizendo: “É, por conseqüência, lícito fazer bem nos sábados.” Então disse ao homem com a mão mirrada que ficasse diante da congregação. Mágoa e ira misturavam-se em Seu olhar penetrante e majestoso; mas, voltando-Se compassivamente para o homem afligido, ordenou-lhe que estendesse a mão. O homem obedeceu e eis que a mão “ficou sã como a outra!”
Os fariseus, frustrados, estavam enraivecidos, “cheios de furor”, diz Lucas; e saíram para conspirar novamente contra Jesus. Tão amargo era seu ódio, que se aliaram aos herodianos, partido político impopular entre os judeus.y Os principais do povo estavam prontos a participar de qualquer intriga ou aliança que os ajudasse no seu confesso propósito de levar à morte o Senhor Jesus. Cônscio dessa determinação iníqua contra Si, Jesus afastou-Se da localidade. Outras acusações de profanação do sábado, feitas ao Senhor por casuístas judeus, serão consideradas mais tarde.z
Notas Do Capítulo 15
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Requisitos rabínicos concernentes à observância do Sábado — “Nenhum aspecto do sistema judeu era tão marcante quanto sua extraordinária rigidez relativa à observância do sábado como dia de completo descanso. Baseados no mandamento de Moisés, os escribas haviam formulado uma vasta lista de proibições e injunções, abrangendo toda a vida social, individual e pública, levando-a a extremos de ridícula caricatura. Leis prolixas foram prescritas sobre os tipos de nós que poderiam ser atados legalmente no sábado. Eram ilegais os nós dos cameleiros e marinheiros, e era igualmente ilegal atá-los ou desmanchá-los. Um nó que pudesse ser desmanchado com uma só mão, podia ser desfeito. Um sapato ou sandália, um odre de vinho ou de azeite, um vaso de pele podiam ser amarrados. Um cântaro junto a uma fonte podia ser preso ao cinto, mas não com uma corda… Acender ou apagar o fogo no sábado era um grande desrespeito ao dia, e nem mesmo em caso de enfermidade se permitia violar as regras rabínicas. Era proibido administrar eméticos no sábado, consertar um osso fraturado ou pôr no lugar uma junta deslocada, embora alguns rabis mais liberais afirmassem que tudo o que punha em perigo a vida invalidava a lei do sábado, porque os mandamentos tinham sido dados a Israel apenas para que pudesse viver por eles.’ Se uma pessoa fosse soterrada no sábado, podia ser socorrida se ainda estivesse viva, mas, se morresse, devia ser deixada no mesmo lugar, até que o sábado terminasse.”— Geikie, Life and Words ofChrist, çap. 38.
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A festa não identificada. — Muita controvérsia há sobre a festa mencionada em João 5:1, na ocasião em que Jesus curou o paralítico no tanque de Betesda. Muitos escritores afirmam que era a Páscoa, outros que era a festa de Purim, ou qualquer outra celebração judaica. O único aspecto de importância relacionado com o assunto é a possibilidade de descobrir-se, pelo fato, caso pudesse o mesmo ser comprovado, algo sobre a ordem cronológica dos eventos nesse período da vida de nosso Senhor. Não nos é dito que festa era essa, nem o ano, ou época do ano em que ocorreu. O valor do milagre efetuado nessa ocasião, assim como o do discurso doutrinário que provocou, de forma alguma depende da determinação da data.
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Os pães da proposição. — Esse nome se refere ao “pão da presença” e quer dizer que era colocado na presença de Jeová. O pão assim santificado era feito sem fermento, e consistia de doze formas, que deviam ser depositadas no Lugar Santo em duas colunas de seis unidades cada. Zenos, no Standard Bible Dictionary, escreve: “Era permitido que ficassem ali uma semana inteira, ao término de cujo período eram removidos e comidos pelo sacerdote em terreno santo, isto é, dentro dos recintos do santuário. Era considerado sacrilégio outras pessoas que não os sacerdotes comerem os pães da proposição, pois eram ‘santos’”. Ver Êxodo 25:30; Lev. 24:5–9; 1 Sam. 21:1–6.
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O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. — Edersheim (vol. 1, pp. 57, 58) diz: “Quando Davi, fugindo de Saul, ‘sentiu fome’ e comeu o pão da proposição, dando-o aos seus seguidores, embora pela letra da lei levítica o mesmo pudesse ser comido apenas pelos sacerdotes, a tradição judaica justificou sua conduta, alegando que ‘o perigo de vida sobrepujava a lei do sábado’, e, portanto, todas as leis que com ela se relacionavam… Na verdade, a razão pela qual Davi era inocente comendo o pão da proposição era a mesma que tornava legal o trabalho dos sacerdotes. A lei do sábado não era meramente descansar, mas descansar para adorar. Seu objetivo era o serviço do Senhor. Os sacerdotes trabalhavam no sábado, porque esse trabalho era o objetivo do sábado, e Davi teve permissão para comer o pão da proposição não somente porque houvesse perigo de vida por inanição, mas porque ele argumentou que estava a serviço do Senhor e precisava desse alimento. Da mesma forma, os discípulos que seguiam o Senhor estavam em Seu serviço; e ministrar a Ele era mais do que ministrar no templo, pois Ele era maior do que o templo. Se os fariseus tivessem acreditado nisso, não teriam tido dúvidas quanto à conduta dos discípulos, e nem, ao fazê-lo, teriam eles mesmos infringido aquela lei superior que pede misericórdia e não sacrifício.”